sexta-feira, 1 de abril de 2011

Os Cabeças Raspadas

por Daniel Aarão Reis | publicada em: 29/3/2011
O Globo, de Rio de Janeiro (RJ)

A recente viagem ao Brasil do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, continua a suscitar indagações.

O mundo já está acostumado aos shows midiáticos e aos espetáculos de pirotecnia que cercam os deslocamentos do chefe da maior potência mundial, mas eles de modo geral estão associados a objetivos definidos ou presumíveis.

Não foi o caso da última viagem.

O que veio Obama fazer no Brasil?

Bater um papo com Dilma Rousseff? Tomar drinks com ex-presidentes? Visitar o Corcovado à noite? Fazer um comício no Teatro Municipal? Espiar um grupo de capoeira na Cidade de Deus?

Fiquemos com as cenas mais bonitas: o panorama da cidade e o jogo da capoeira. Eu seria o último a subestimar a linda vista que se pode descortinar do Cristo ou a não valorizar o ritmo e a beleza da luta que se realiza ao som do berimbau, mas seriam razões suficientes para mobilizar oitocentos homens, um porta-aviões, cinco helicópteros, duas limusines blindadas e mais a parafernália de soldados e guardas brasileiros, sem falar no precioso tempo de sumidades políticas e jornalísticas do Brasil e do mundo?

Não há um ridículo atroz neste jogo de cena?

O fato é que a viagem provocou, como seria de esperar, a ira de grupos e partidos revolucionários. Um deles, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado/PSTU, resolveu protestar. Um ato de rotina numa república democrática. Quem gosta aplaude. Quem não gosta protesta.

Pois foram às ruas algumas dezenas de militantes, com suas bandeiras e gritos de revolta, e mais outras pessoas que se juntaram, por concordarem ou acharem graça na manifestação.

Desfilaram pelo centro da cidade, vigiados de perto pela polícia, com o bom humor das minorias críticas que se sabem reduzidas mas que extraem disso ânimo para continuar protestando, à espera de melhores momentos. A passeata, como seria óbvio, terminou no consulado estadunidense, é ali que desembocam há décadas todos os atos públicos realizados no Rio de Janeiro contra as políticas e as lideranças do Grande Irmão do Norte.

Tudo nos conformes, na paz da rotina democrática. Os manifestantes manifestavam, a polícia policiava.

Foi aí que alguém lançou um coquetel molotov contra o prédio do consulado. A garrafa cheia de gasolina explodiu, ferindo um funcionário.

O episódio suscitou os "instintos primitivos" da polícia. Encerrou-se, então, a rotina democrática e começou a barbárie.

Em vez de dispersar a pequena multidão, os meganhas saíram baixando o cacete e prendendo gente.

Prenderam treze. Dez militantes do PSTU e mais três pessoas que se haviam incorporado ao protesto, entre as quais um menor de idade e a respeitável e popular figura da "vovó tricolor", envergando a camisa de seu bem-amado clube, mas disso não quiseram saber os policiais. Caiu na rede, na rede ficou, e assim vestida foi levada presa.

E anotaram: presos em flagrante delito.

Falso.

Uma falsidade evidente, eis que um molotov só pode ser lançado pela mão de apenas uma pessoa. Na história das manifestações em todo o mundo, jamais, por impossibilidade física, treze braços foram capazes de arremessar um único molotov. Além disso, nos autos das prisões, ninguém foi acusado nominalmente de nada. Interrogados, todos negaram veementemente ter praticado o delito, atribuindo-o à irresponsabilidade ou à provocação de alguém não identificado.

Nestas horas a polícia não costuma conversar ou discutir. Empurra, bate, prende e leva. Prendeu os treze. Levou os treze. Foram todos para a delegacia, na expectativa de esclarecerem suas razões e serem imediatamente libertados.

Não foi o que aconteceu.

O representante do Ministério Público e o juiz de plantão, solicitados pelo advogado dos presos, e exercitando o saber jurídico, houveram por bem manter a prisão. Alegaram que os manifestantes eram um "perigo" para a excursão que o presidente dos EUA fazia no Brasil, inclusive o menor de idade e a "vovó tricolor". Além disso, argumentaram que "maculavam" a imagem do país no mundo. Um país que vai organizar a Copa do Mundo e as Olimpíadas não pode tolerar certas liberdades. Mesmo que sejam republicanas e democráticas.

À violência da prisão arbitrária somou-se à violência da Justiça.

E veio então uma terceira violência. Ignorando o caráter politico do protesto - e da prisão -, despacharam os detidos para presídios comuns, onde permaneceram por setenta horas, quase três dias. As mulheres - três -, para Bangu 8; os homens - nove -, para o presídio Ary Franco; e o menor para o Centro de Triagem, na Ilha do Governador. E se permitiram - quarta violência - raspar as cabeças dos homens, numa tentativa - vã - de ofendê-los e de humilhá-los.

Violências inomináveis. À sombra da lei, mas ilegais. E covardes.

Que saibam o juiz, o representante do Ministério Público, os policiais e os carcereiros que, se máculas houve - e houve máculas - elas foram causadas por esta sequência de violências, pelas quais suas excelências são responsáveis.

Foram cometidas, estão feitas, não há como repará-las.

Resta-me, além do registro indignado do triste episódio, à maneira de uma singela homenagem, declinar os nomes dos que foram presos: Gilberto Silva, Rafael Rossi, Pâmela Rossi, Thiago Loureiro, Yuri Proença, Gualberto Tinoco, Gabriela Costa, Gabriel Paulo, José Braunschweiger, Andriev Santos, João Pedro, Wagner Vasconcelos, Maria Pereira da Silva.

Rasparam a cabeça de muitos. Mas vocês conservaram o mais importante: a cabeça e o caráter. Cabe esperar agora que não sejam raspados da memória da cidade e do país.

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«Pelo arquivamento do processo criminal contra os 13 do Consulado.»

http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2011N8248